sexta-feira, 24 de fevereiro de 2006



Guardanapos De Papel - Milton Nascimento
( Léo Masliah)

Na minha cidade tem poetas, poetas,
Que chegam sem tambores nem trombetas, trombetas,
E sempre aparecem quando menos aguardados, guardados,guardados,
entre livros e sapatos, em baús empoeirados.
Saem de recônditos lugares no ares, nos ares,
Onde vivem com seus pares seus pares, seus pares, seus pares
e convivem com fantasmas multicores, de cores, de cores,
que te pintam as olheiras e te pedem que não chores
Suas ilusões são repartidas partidas, partidas,
Entre mortos e feridas, feridas, feridas,
Mas rexistem com palavras, confundidas, fundidas, fundidas,
Ao seu triste passo lento pelas ruas e avenidas.
Não desejam glorias nem medalhas, medalhas, medalhas,
Se contentam com migalhas, migalhas
Migalhas de canções e brincadeiras com seus versos dispersos, dispersos,
Obcecados pela busca de tesouros submersos.
Fazem quatrocentos mil projetos, projetos, projetos,
Que jamais são alcançados cansados, cansados,
Nada disso importa enquanto eles escrevem, escrevem, escrevem,
O que sabem que não sabem e o que dizem que não devem.
Andam pelas ruas os poetas, poetas, poetas,
Como se fossem cometas, cometas, cometas,
Num estranho céu de estrelas idiotas e outras, e outras,
Cujo brilho sem barulho veste suas caldas tortas.
Na minha cidade tem canetas, canetas, canetas,
Esvaindo-se em milhares, milhares,
Milhares de palavras retorcidas e confusas, confusas, confusas,
Em delgados guardanapos, feito moscas inconclusas.
Andam pelas ruas escrevendo e vendo, e vendo,
Que eles vêm nos vão dizendo, dizendo,
E sempre eles poetas de verdade enquanto espião e piram, e piram,
Não se cansam de falar do que eles juram que não viram.
Olham para o céu esses poetas, poetas, poetas,
Como se fossem lunetas, lunetas, lunáticas,
Lançadas ao espaço e o mundo inteiro, inteiro, inteiro,
Fossem vendo pra depois voltar pro Rio de Janeiro.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2006

Procura da poesia

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,não indagues.
Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e amemória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros.Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
Carlos Drummond de Andrade
Mart´nália
CD: Menino do Rio

Cantora estréia no selo Quitanda, de Maria Bethânia, recriando Caetano e Melodia, e revelando a face sambista da geração de Moska e Ana Carolina.

É preciso mais que talento para, em alguns anos de carreira, reunir sobre si o respeito e o entusiasmo de nomes como Martinho da Vila, Caetano Veloso e Maria Bethânia. É preciso mais que nome para, a cada trabalho, fazer surgir como clássicos novas canções e compositores, e ao mesmo tempo prestar reverência originalíssima aos mestres do samba e afins, dentro da generosa árvore genealógica musical brasileira. É o caso de Mart´nália, que chega a seu quinto disco, Menino do Rio, o primeiro pelo selo Quitanda, de Maria Bethânia, com distribuição da Biscoito Fino. A filha de Martinho da Vila, afilhada musical de Caetano (que dirigiu seu disco Pé do meu Samba) chega agora, pelas mãos de Bethânia e do maestro Jaime Alem, ao mais diversificado de seus trabalhos. De Caetano (na recriação de Menino do Rio) a Celso Fonseca (no partido alto A Origem da Felicidade, com a bateria da Vila Isabel); de Luiz Melodia (na releitura de Estácio, Holly Estácio) a Ana Carolina (da impagável Cabide); do suingue carioca-gaúcho de Totonho Villeroy, em São Sebastião (com participação de Bethânia), ao pop dos amigos e parceiros Moska e Leoni, em Soneto do teu Corpo, passando pela balada de Guilherme Arantes, Só Deus é Quem Sabe. Dentre os que têm o samba por religião estão Martinho da Vila e Nelson Rufino, que assinam Nas Águas de Amaralina. Roque Ferreira e Jorge Agrião empunham a bandeira do samba-de-roda, na hospitaleira Casa da Minha Comadre. Das sonoridades do Recôncavo ao fundo de quintal tipicamente carioca de Boto meu Povo na Rua, de Arlindo Cruz, Acyr Marques e Ronaldinho, com participação de Arlindo Cruz, no banjo, até o ancestral Monsueto, de Casa 1 da Vila. Seja ainda como compositora - na irresistível Essa Mania, em parceria com Moska; no samba de intensa riqueza melódica Sem Perdão a Vida É Triste e Solidão, feito com Ana Costa e Zélia Duncan; nas parcerias com Paulinho Black (Pára Comigo) e Mombaça (Pretinhosidade) – ou como musa – na faixa que abre o disco, Pra Mart´nália, de Fred Camacho e Jorge Agrião -, tudo é samba na voz e no estilo de Mart´nália.

Fonte: www.biscoitofino.com.br